domingo, 19 de agosto de 2012

um rosto meu


Com a luz do espelho, ele se encara. Os olhos de calmaria sonolenta apontam para os cachos, nem tão longos e nem tão curtos, que se abraçam circularmente, despencando à procura de companhia. Eles conseguem tocar somente o início da testa, na qual repousa uma despreocupada e mínima ruga que, de tão superficial, parece nunca querer feri-la.
Dentre as travessas memórias do rosto, dos tempos de criança, vale mencionar a fenda horizontal abaixo do globo esquerdo e o borrão cicatrizado no canto da boca. Desenham o pouco do rosto que não é envolvido pela nuvem negra e indolente de pêlos. A unidade do conjunto escuro dava-lhe a sensação de personalidade própria. Uma elegância deselegante que atraía alguns do mesmo modo que repelia outros. O bigode, comprido como o de Dali, por vezes montava na boca, dominando-a.
O rosto foge do estático enquanto se observa. Esta é a parte que ele mais gosta. Uma cara sorridente esboçou uma certa preguiça acomodada. A boca se mexia artisticamente para esconder seu interior ao moldar as palavras imprecisas e vagas que soltava de vez em quando.
São apenas três, as pintas no conjunto todo. Duas estão dos lados, onde cada orelha surpreende seu macio lóbulo, lembrando-os de que ali poderiam perfeitamente estar as carinhosas e sensíveis joias de uma dama. A outra é uma perturbada ermitã na superfície reta do nariz. E digo que era tão solitária, que se fosse personagem de livro iria ser confundida com D.Quixote enquanto dava cambalhotas, nu, em seu retiro na Serra Morena.
Por fim, restou a região mais difícil. Os pêlos sobre os olhos formavam uma ponte quase completa, a não ser por alguns fios que faltavam. Mas com cara de bravo, qualquer um poderia se aventurar a passar por ali. Agora, os espiões, que mais enxergam que são enxergados, passavam a sensação de que evitavam a eles mesmos. Eram escorregadios, procurando se esconder atrás de uma muralha de pálpebras de pedra, que o rapaz lutava para não prevalecerem. Vencedoras, apagou a luz e foi dormir.

sábado, 11 de agosto de 2012

Lembrancinha boa

Em um dia sem sol não se faz milagre. Mesmo com as coisas certas num lugar certo, não se faz milagre. Depois de uma chuva, então, nem se fale. A grama molhada e nossos olhos buscando meio sem esperança um lugar pra poder ficar. E você nunca me ajudava a escolher. Hahaha, não me ajudava mesmo. Deixava o peso de uma decisão simples nas mãos trêmulas desse indeciso. A dúvida nem era tanta, mas por querer te agradar tentava entrar na tua mente e decifrar teu pensamento pra ver se não estaria de perguntando: "Que!? Isso?!" E por isso te explico agora, por isso sempre demorava.

Bom, de qualquer forma, nosso piso foi um deserto aslfatado e nossa grama um banco marrom, de madeira lustrada. O vento, depois de uma pequena trégua, volta pra tentar cortar a gente no meio. E o sol fraquinho lá no seu mundinho, tímido, em seu próprio jogo de esconder. Uma única esperança, frágil, de que o dia podia ser bom era aquela garrafa ter dentro dela um vinho, no mínimo, razoável. "Hm, nada mal." E aí, de gole em gole, de trago em trago, até que nos esquentou um pouco por fora.

Esse vinho e o pão e a geléia de amora e todas as coisas coisas que a gente levou pra nos ajudar, travaram uma batalha silenciosa pela nossa diversão. Lutavam com o que tinham contra o dia cinza, frio e úmido. Foi um massacre. É claro que essas mínimas coisas, contra uma imensidão de céu e ar, anciãos, que já viram o dia e a noite tantas vezes, não tinham nem um fiapo de chance. Aquele pão, coitado - ou o que sobrou dele - já estava praticamente incomível. O dia tinha sido duro com ele.

Tinha tudo pra dar errado, não é? Mas com a gente pra poder rir disso tudo e esquecer o entorno, era possível. Eu nem lembro de dia frio, na verdade. Tudo que eu escrevi foi uma coisa um pouco inventada de um sonho que eu tive. Me lembro, sim, de um dia com o sol lá em cima, tão forte que a gente teve que se encostar em uma árvore e pedir licença pra usar sua sombra. A gente deitava na grama, olhando pras folhas balançando com um vento aconchegante, lembra? E aí tocava qualquer música que nos fazia viajar por aqui e ali e voltar em poucos minutos pra realidade.

A verdade é que nesse momento o ambiente já estava perfeito pra ser usado como tinha que ser. E a gente se aproveitou da situação pra criar mais um dia marcante nesse pequeno grande fragmento de memória que agora me abraça sempre pra eu te querer. Ah, e tinham mais algumas coisas, mas eu nem lembro direito, já estou ficando com sono.

Ah! Claro! Depois disso a gente tinha um encontro. Pegamos um ônibus que parou fora do ponto só porque a gente pediu. E ele foi direto, cortando as ruas sem trânsito até o nosso destino. Boa noite!